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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Acórdão n.º 396/2011, Declaração de Voto

Foi requerido nos termos da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011), ao Tribunal Constitucional, sendo a decisão do referido Tribunal, a que se passa a transcrever:
 «Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011».
Muito se tem falado este Acórdão – Acórdão n.º 396/2011 sem fazer referência aqueles que decidem também em consciência, (mais reforçada, talvez - pois é difícil contrariar decisões maioritária).
Deixo aqui, o texto das duas Declarações de Voto, que sob o ponto de vista jurídico, são exemplares. A primeira do Conselheiro João Cura Mariano e a segunda do Conselheiro J. Cunha Barbosa.

                                                  Retirada da net

Primeira Declaração de Voto: «Divergi da posição maioritária de julgar conforme à Constituição as reduções remuneratórias impostas pelos artigos 19.º, 20.º e 21.º, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, porque entendo que as mesmas violam o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, consagrada no artigo 2.º da Constituição.
Na verdade, o longo e contínuo passado de aumentos sucessivos dos vencimentos dos trabalhadores da função pública, acompanhando o aumento do custo de vida, criaram-lhes uma expectativa consistente dos seus salários manterem essa relação de proporcionalidade, não se perspectivando a possibilidade dos mesmos poderem ser reduzidos, pelo que programaram e organizaram as suas vidas, tendo em conta esse dado que consideravam seguro.
Por isso, as reduções agora efectuadas pelas normas sob fiscalização, na medida em que contrariam inesperadamente uma política solidificada ao longo dos anos, vieram frustrar aquela expectativa legitimamente fundada.
Admite-se, no entanto, que o legislador possa defraudar a confiança que os cidadãos depositaram na estabilidade de um determinado regime jurídico quando haja um interesse público que o justifique.
Essa justificação tem que ser encontrada num juízo de proporcionalidade, ou seja, o interesse público que o legislador tem em mente deve superar o peso das expectativas dos particulares e a alteração operada no quadro legislativo tem que se revelar adequada, necessária e proporcional ao sacrifício imposto aos cidadãos.
A redução dos salários dos funcionários públicos integrou a política orçamental para 2011, que teve como objectivo fundamental a redução do défice de 7,3% do PIB, então previsto para 2010, para 4,6% em 2011, obedecendo a imposição comunitária.
Como é sabido Portugal atravessa a sua pior crise das últimas décadas nos domínios económico, financeiro e social, encontrando-se a economia portuguesa numa trajectória insustentável que, a não ser corrigida, pode levar o país, a breve prazo, a um desastre económico de grandes proporções e a um retrocesso de difícil recuperação.
A situação financeira degradou-se fortemente nos últimos anos, sendo essa degradação visível tanto no que respeita à situação financeira global da economia, como no que respeita ao caso particular das finanças públicas, sendo evidentes as dificuldades de financiamento externo que colocam em risco a capacidade do Estado português solver os compromissos assumidos.
Perante este panorama, o Orçamento de Estado para 2011 foi encarado como um instrumento importante de correcção da trajectória deficitária das contas do Estado, medida essencial para transmitir uma imagem da capacidade do país solver os seus compromissos, para continuar a ter acesso a fontes de financiamento, a juros razoáveis, que lhe permitam iniciar uma recuperação económica decisiva.
A superioridade do peso do interesse público que presidiu à medida aqui sob fiscalização não oferece quaisquer dúvidas perante os interesses particulares afectados, assim como a aptidão dessa medida para atingir os objectivos definidos.
O mesmo não sucede quanto à necessidade ou exigibilidade do meio escolhido em relação ao fim desejado. Na verdade, não basta demonstrar que a via escolhida é adequada à finalidade visada, é também necessário evidenciar-se que ela é a que menos encargos impõe aos cidadãos. Face à violação da confiança dos cidadãos e aos danos subsequentes, essa medida tem que se revelar “a mais suave”, “a mais benigna”, entre as medidas possíveis para alcançar a finalidade pretendida. Só assim se poderá concluir pela necessidade da sua aprovação.
Ora, se o fim perseguido é uma redução drástica do défice das contas públicas, o mesmo tanto poderá ser obtido por via do aumento da receita como pela via da diminuição da despesa.
Sabe-se que não é indiferente o combate ao défice pelo lado da receita ou pelo lado da despesa, atenta a diferença dos efeitos colaterais na economia destas opções, não podendo este Tribunal cercear a liberdade do legislador escolher o caminho que considera mais eficaz para atingir o seu objectivo, como refere o presente acórdão.
Contudo, quando o corte da despesa é efectuado através da redução dos vencimentos dos funcionários públicos, a essencialidade dos referidos efeitos colaterais coincide com as consequências duma tributação dos rendimentos – redução do poder de compra da população, com reflexos na procura interna.
Não está demonstrado que exista uma diferença significativa nos efeitos da opção da redução dos vencimentos dos funcionários públicos, relativamente a uma tributação acrescida dos rendimentos de todos os cidadãos, sendo certo que ambas alcançariam o objectivo de redução do défice público, com menores encargos para os funcionários públicos, uma vez que a distribuição do sacrifício recairia sobre um universo substancialmente mais alargado. Além de que, estando nós perante um objectivo de interesse comum a todos os cidadãos, era indiscutivelmente mais justo que a medida de redução dos rendimentos particulares não atingisse apenas os trabalhadores da função pública.
Não se revelando, pois, que a medida escolhida pelo legislador para alcançar a redução do défice das contas públicas fosse a “mais benigna” entre as medidas possíveis, não se mostra preenchido o requisito da necessidade que poderia justificar a violação do princípio da confiança em nome da prossecução de um interesse público superior, pelo que me pronunciei pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 19.º, 20.º e 21.º, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro.
Fixaria, contudo, por razões de evidente interesse público de excepcional relevo, a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, apenas a partir de 1 de Janeiro de 2012, permitindo assim ao legislador perspectivar medidas alternativas de redução do défice público que lhe permitisse atingir os objectivos definidos, utilizando-se a faculdade prevista no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição».
Segunda Declaração de Voto: «A tese que obteve vencimento, no que concerne às questões - vigência temporal das normas impugnadas, participação das organizações dos trabalhadores na elaboração da lei, irredutibilidade dos salários, princípio da protecção da confiança -, não me suscita uma posição de plena discordância, antes pelo contrário, ressalvando-se um ou outro aspecto quanto à fundamentação que a sustenta, designadamente quanto ao princípio da confiança e à sua projecção na análise e aplicação que veio de ser concretizada e no que respeita ao princípio da igualdade.
Efectivamente, a discordância verifica-se, essencialmente, quanto à apreciação da questão de (in)constitucionalidade à luz do princípio da igualdade, já que entendo que tal princípio levaria a uma solução diversa da que obteve vencimento, ou seja, determinaria que se concluísse pela inconstitucionalidade material das normas sindicandas.
Impõe-se, desde já, referir que se não é insensível à situação de gravidade e excepcionalidade - forte desequilíbrio financeiro das contas públicas e elevada dívida soberana – que afecta o país e, consequentemente, que a mesma exija a adopção de medidas de carácter excepcional e de forma a garantir, num futuro próximo, o afastamento de uma tal situação e a permitir a sua sustentabilidade económica e financeira.
Porém, como se haverá de convir, tal situação de excepcionalidade não poderá conduzir a uma situação de afastamento de todo e qualquer controlo judicial, sem embargo de se dever reconhecer o amplo poder de conformação de que naturalmente dispõe o legislador democrático; na realidade, como afirma Jorge Reis Novais (cfr. ‘Os princípios constitucionais estruturantes’, pág. 111), «… Uma concepção constitucional de igualdade material conduz inevitavelmente a um padrão de controlo da sua observância em que o julgador é invariavelmente remetido para juízos de valoração que incidem sobre os fundamentos ou os critérios que pretendem justificar, em caso de desigualdade de tratamento, a distinção ou discriminação levada a cabo pelo legislador e, em caso de igualdade, a equiparação ou indiferenciação produzida. Ora, desse ponto de vista, tendo sobretudo em conta o amplo espaço de conformação que deve ser reconhecido ao legislador democrático, a resposta mais comum vai no sentido de uma autocontenção judicial que, todavia, conhece várias gradações. …».
As normas sindicandas – artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011) – introduzem reduções às remunerações mensais ilíquidas, a partir de determinados escalões remuneratórios, percebidas por um universo restrito de pessoas, como sejam, os enumerados no n.º 9 do artigo 19.º, todas elas marcadas transversalmente por um elemento comum – ligação profissional ou funcional à administração pública, ou dito de outra forma, exercício de funções em regime específico de função pública -, servindo, portanto, no sector público.
Tal redução remuneratória tem como escopo principal a satisfação dos encargos públicos (no caso, através da sua diminuição), permitindo que se atinja um maior equilíbrio financeiro, entre a despesa e a receita, a expressar a nível do Orçamento do Estado, obstando, a final, a um aumento da dívida soberana e, bem assim, a permitir que seja alcançada uma maior sustentabilidade económico-financeira do país.
Porém, tal objectivo, de manifesto alcance nacional, não pode deixar de integrar interesse público geral a prosseguir por todos os que se encontrem nas mesmas condições remuneratórias previstas nas normas em causa, que já não e tão só pelos que transportem a ‘mácula’ de exercício de funções em regime específico de função pública, sob pena de discriminação negativa, no mínimo, injusta, já que por razões, como se deixou dito, meramente sócio-profissionais, e em contravenção do disposto no artigo 13.º n.º 2 da CRP (cfr., ainda, artigos 18.º, nº 3 e 59.º, n.º 1, al. a) da CRP).
Na realidade, sem embargo de se poder reconhecer que o interesse público geral, cuja definição compete ao legislador (à lei), justificará a medida adoptada, sempre restará por explicar a confinação dos seus encargos a um universo restrito ou especifico de pessoas, como seja, aos que exercem funções ou actividade em regime de função pública, sendo certo que estes poderão ver a sua situação ainda mais agravada (para além da redução da ‘massa salarial’) em função de aumentos de impostos ou taxas que impenderão, naturalmente, sobre um universo de pessoas que, originariamente e em função do interesse público em causa, deveria responder, atento o princípio da igualdade, pelos encargos dele resultantes, interesse esse que, obviamente, não é específico dos que exercem funções públicas.
Por mera curiosidade, deixa-se notado, sem qualquer propósito de defesa de estabelecimento de limite ao poder de conformação do legislador, para além, obviamente, dos resultantes da lei fundamental, o que a propósito da questão em análise deixou plasmado o Conselho Económico e Social, no seu parecer de 26 de Outubro de 2010, sobre a Proposta de Orçamento do Estado para 2011(‘in’ Pareceres do CES, www.ces.pt): « … a redução de vencimentos dos funcionários públicos e dos trabalhadores do Sector Empresarial do Estado (SEE) é uma medida injusta, uma vez que faz repercutir sobre estes trabalhadores grande parte do ónus de redução do défice, a qual a todos beneficia. O CES entende que tal tipo de medidas só deve ser tomado quando estão esgotadas todas as alternativas, o que o CES considera não ser o caso uma vez que se coloca uma grande parte do ónus da consolidação orçamental nesses funcionários. …».
No que respeita aos artigos 20.º e 21.º da Lei do Orçamento em causa, na medida em que aditam normas aos Estatutos, respectivamente, dos Magistrados Judiciais (artigo 32.º-A) e do Ministério Público (108.º- A), a injustificação da redução daí resultante, sem levar a um total afastamento das razões supra referidas, fundar-se-á mais na violação do princípio da confiança, tendo em conta a ideia de justiça e proporcionalidade, o que, desde logo, se afigura resultar da aplicação, sem qualquer razão expressa ou aparente adiantada pelo legislador, de uma redução em função de uma taxa superior (20%), como seja, o dobro da máxima prevista no artigo 19.º, e, ainda, da forte suspeita da sua intemporalidade, colocando-se, deste modo, em crise os valores da segurança jurídica e da protecção da confiança, perante a legitima expectativa criada nos destinatários em face do quadro normativo vigente à data da introdução de tais normas, no mínimo, de que não ocorreria um tratamento mais gravoso.
Dir-se-á, por fim, que o efeito ablativo nas remunerações dos destinatários das normas, sem previsão de qualquer tipo de contrapartida, coloca em crise a confiança e a proporcionalidade, enquanto factores de valoração a atender na aplicação do princípio da igualdade, tanto mais que, tratando-se de medida adoptada unilateralmente e com repercussão tão só na esfera pessoal dos destinatários, não consente que estes possam compensar tal ablação por outra forma e de modo a obterem a quota-parte de que se viram despojados, tendo em vista a necessidade de satisfação de possíveis e naturais obrigações por si confiadamente assumidas em função do quantitativo remuneratório anterior, situação esta que se tornará, ainda, mais significativa perante a exclusividade de funções exigida pelo estatuto profissional de alguns dos destinatários, impeditiva do exercício de qualquer outro tipo de actividade (complementar) remunerada, através de um esforço pessoal e com apelo à redução das suas horas de descanso e de lazer.
De tudo quanto se deixa exposto, concluiria pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2011)».
         Para ler o Acórdão (clique aqui)