No crime de violação previsto no art.º 164.º do Código Penal está em causa a liberdade sexual, a auto-conformação da vida e prática sexuais da pessoa, afrontada pelo constrangimento daquela a suportar ou praticar os actos descritos no n.º 1 e 2 do mesmo artigo.
A liberdade sexual decorre do direito do indivíduo a dispor do seu corpo, parte integrante da sua autonomia pessoal, sendo um elemento fundamental do direito à intimidade e vida privada.
Ao longo dos tempos os crimes de natureza sexual foram sofrendo profundas alterações ao nível conceitual, interesses a proteger e a própria moldura da pena. Actualmente, trata-se de um crime contra a pessoa e não, como no passado, contra a moralidade sexual. A protecção da liberdade e autodeterminação sexual surge com a Revisão de 1995.
No que respeita ao crime de violação, o legislador sempre integrou como elemento do tipo – o uso da violência – já previa o art. 394.º do CP, de 1852. Neste normativo, preenchia-se o tipo desde que verificada a cópula ilícita por «via de meios fraudulentos tendentes a suspender o uso dos sentidos».
O n.º 1 do art. 201.º do CP de 1982, veio a prever «Quem tiver cópula com mulher, por meio de violência, grave ameaça ou, depois de, para realizar a cópula, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir ou ainda, pelos mesmos meios, a constranger a ter cópula com terceiro, será punido com prisão de 2 a 8 anos».
Em 95, o CP veio a dar nova redacção ao crime de violação, estabelecendo « Quem tiver cópula com mulher, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para realizar a cópula, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, ou, ainda, pelos mesmos meios, a constranger a tê-la com terceiro, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos».
Acrescentando o seu n.º 2 que «Com a mesma pena é punido quem, nos termos previstos no número anterior, tiver coito anal com outra pessoa, ou a constranger a tê-lo com terceiro».
Sem prejuízo da alteração prevista na L n.º 65/98, a actual redacção do crime de violação prevista na L 59/2007, de 4 de Setembro, veio a estabelecer no seu n.º1 que: «Quem, por meio de violência, ameaça grave,
ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos».
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos».
As sucessivas alterações denotam que tem cabido à jurisprudência o entendimento a ter sobre o conceito de violência neste tipo de crime.
Na vigência do CP de 1888, o STJ defendia que o elemento - violência - deveria estar preenchido sempre que o acto fosse praticado contra ou sem a vontade da vítima. (Neste sentido o Ac. do STJ de 07/10/1064. Mas, por exemplo, o Ac. da Relação de Lisboa, de 27/03/68, defendeu que o elemento do tipo – violência - teria que consubstanciar uma acção do agente.)
A limitação do conceito de violência é fundamental, pois a diferença entre a equiparação da violência à ausência de vontade da vítima ou à oposição e a equiparação a violência à existência de acção ou comportamento físico traduzem em termos práticos na absolvição ou não do arguido. Em extremo, leve a uma situação no mínimo caricata – em caso idêntico ter o tribunal decisões diferentes – condenar/absolver.
Não tem sido pacífica a limitação do conceito de violência neste tipo de crimes, na doutrina.
Segundo o Professor Figueiredo Dias, «não basta nunca à integração do tipo objectivo de ilícito (…) que o agente tenha constrangido a vítima a sofrer ou a praticar, acto de violação, - isto é, que este acto tenha tido lugar sem ou contra a vontade da vítima».
Defende este Professor que «o meio típico de coacção é pois, antes de tudo, a violência, existindo esta quando se aplica a força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva), destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada». Nas Actas da Comissão Revisora, na discussão do tipo de crime de coacção sexual, expressamente refere que «não basta a simples falta de consentimento, sendo preciso, por exemplo, a violência ou ameaça grave».
Já o Juiz Sénio Alves, defende «na falta de referência expressa do artigo 164.º, n.º 1, à violência física, parece ser de concluir que tanto a violência física como a moral, se determinaram a cópula, são elementos constitutivos do tipo de violação. É que a violência moral (consistente, v.g., no perigo de um mal maior para a vítima ou sua família) pode determinar a cópula e, a não ser que se reconduzissem factos deste tipo à noção de “ameaça grave” (com as dificuldades inerentes á determinação do que é “grave” e à respectiva prova), ela ficaria impune. (…) A “grave ameaça” é algo diferente, de um ponto de vista qualitativo. Consiste, penso, no colocar a vítima perante a iminência da verificação da violência (física ou moral) provocando-lhe um tal temor que a determine à cópula».
Por outro lado, o Juiz Mouraz Lopes considera que com a reforma de 2007 «o legislador optou por criminalizar, nos casos de coação sexual e na violação, apenas as situações de atentados à liberdade sexual que atentam gravemente contra a liberdade da vontade do sujeito, através de coacção grave ou violência e não os casos de prática de actos sexuais de relevo apenas praticados sem o consentimento da vítima maior de idade».
Ao contrário da legislação portuguesa, a espanhola prevê expressamente no que se refere a crimes de natureza sexual, no art. 179.º - o crime de abuso sexual para os casos em que não há violência ou intimidação e sem que haja consentimento, basta a realização de actos que atentem contra a liberdade sexual de outra pessoa.
Na mesma lógica está a legislação italiana, que previu como conduta penalmente relevante – artigo 609 primeiro parágrafo «o induzir alguém a cometer ou suportar acto sexual» como elemento do tipo de crime «às condutas tipificadoras de práticas de actos sexuais abusivos».
Tendo sido já referenciado que o legislador não expressou a noção de “violência” para este tipo de crime, temos verificado que a jurisprudência, ainda que tenha uma tendência maioritária de entender que existia sempre violação quando o acto tivesse sido praticado contra ou sem a vontade do ofendido ou ofendida, segue-se alguns exemplos de decisões em sentido contrário, nomeadamente, Ac. TRC de 17/02/93, Ac. TRP de 06/03/91.
Sobre esta matéria, o Ac. STJ de 25/11/92, chegou a suportar a decisão que o vinculou, no seguinte entendimento - a violência no crime de violação «tem de se traduzir na prática de actos que tenham como resultado o constranger a vítima a suportar uma conduta que não quer, numa construção da figura em que o constrangimento corresponde a um ter de suportar uma determinada actuação, contra a vontade e sem possibilidade do exercício de uma reacção com recurso aos meios normais de defesa contra tal.»
Este entendimento foi recentemente afirmado no Ac. do TRP de 13/04/2011, estando em causa a violação ou não de uma mulher pelo médico que a seguia em consulta na especialidade de psiquiatria. O referido Acórdão prescreve que «A violência exigida pelo artº 164º tem de traduzir-se na prática de actos de utilização de força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva) contra a pessoa da vítima de modo a constrangê-la a não adoptar qualquer atitude de resistência às intenções do agente ou a vencer a resistência já oferecida. O simples desrespeito pela vontade da ofendida não pode ser qualificado de violência».
Esta última afirmação, em resultado da interpretação dada pelo Tribunal, implica, salvo melhor opinião, que o tipo de crime de violação não inclui enquanto elemento do tipo – o não consentimento da vítima. Veja-se: se o simples desrespeito pela vontade da vítima for equiparável ao não consentimento, temos que o não consentimento, não enquadra no tipo de crime de natureza sexual. A ser assim, não deveria o tribunal, de seguida, entender que «será inútil aferir da ausência de vontade ou de consentimento da ofendida, na medida em que o crime de violação previsto no nº 1 do artº 164º do C.P. é um crime de execução vinculada, i. e., tem de ser cometido por meio de violência, ameaça grave ou acto que coloque a vítima em estado de inconsciência ou de impossibilidade de resistir». Isto é, como não houve violência, não carece a verificação da falta ou não do consentimento da ofendida. Se, da prova, se tivesse retirado, acto de violência, já o consentimento ou não da vítima era elemento do tipo?
Por outro lado, o conceito de violência neste tipo de crime, enquanto utilização de força física, leva a uma outra questão: a questão da graduação da força que está intimamente relacionada ao tipo de vítima. Por exemplo: um empurrão num adulto, num homem, numa mulher, ou até mesmo num doente fragilizado fisicamente, impõe necessariamente resultados/danos diferentes.
Tal como vem expresso em Declaração de Voto, no Acórdão identificado em último «o conceito de violência ínsito a uma violação conhece graduações que vão até à brutalidade física e crueldade, mas que podem partir de um ponto em que - o ofensor usa apenas a força necessária para atingir o objectivo da conquista sexual e controlar a vítima».
Fica o registo apenas – das alterações sucessivas na redacção dada aos crimes de natureza sexual, ficam as mesmas dificuldades do passado - em limitar um conceito indeterminado – violência – que faz parte do tipo de crime de violação. Bem andou, a legislação espanhola e a italiana.
Ver o Ac. TRP, de 13/04/2011.
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